domingo



O fosso que divide a família portuguesa torna-se de hora a hora mais profundo. E uma tensão desta natureza não se pode prolongar indefinidamente. É ver como basta que se abra uma fenda de expressão no muro de silêncio que nos empareda para que as duas metades se mos­trem como são: uma a dar livre curso à sua indignação represada; a outra, aterrada perante a avalanche, a colmatar o rombo de qualquer maneira.
Os próprios responsáveis por semelhante monstruosidade social o quiseram assim desde o princípio. Em vez de opositor, de discordante, de adversário-substantivos conciliantes-, foram buscar à teologia o termo inimigo para marcar a fogo eterno a pessoa de cada cidadão afastado das graças do poder. Tiranicamente, excluíam-se do redil nacional as ovelhas ranhosas que se recusavam a ouvir o assobio do pastor.


Miguel Torga, Fogo Preso

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