terça-feira



A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei á secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e práctico
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose publica que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir... Sim, o porvir...
Álvaro de Campos (1928)


O Rapaz Que Queria Ser Um Livro


T adormeceu com o desejo de ser um livro.
Um livro… um livro com pernas e olhos e a sorrir, com capa e com folhas que se pudessem ter nas mãos e passear entre os dedos, e letras, e o cheiro das letras e das folhas e as coisas lá dentro… um prado verde dentro de um bosque ainda mais verde de árvores antigas de um meio dia de Junho e caminhos… muitos caminhos da cor da terra que os come e os alimenta e lá ao fundo…lá ao fundo,um muro. Um muro e muito musgo e mais verde em farrapos a cobrir o granito já gasto e quedo, quase escondido, de atalaia atrás de uma velha e frondosa árvore de quem já ninguém lembrava o nome e uma tabuleta que dizia proibida a entrada a quem não andar espantado de existir. Entrou.
Depois, quando acordou, viu que não podia ser um livro, aquele livro. Faltavam-lhe as duas últimas páginas.

quinta-feira



Nós vivemos habitualmente à superfície de nós, ligados ao que é da vida imediata, enredados nas mil futilidades com que se nos enchem os dias. Mas de vez em quando, o abismo da natureza, um livro ou uma música que dos abismos vem, abre-nos aos pés um precipício hiante e tudo se dilui num sentir que está antes e abaixo e mais longe que esse tudo. Há uma harmonia que em nós espera por um som, um acorde, uma palavra, para imediatamente se organizar e envolver-nos. E aí somos verdade para a infinidade dos séculos.
Vergílio Ferreira, ‘Conta-Corrente 3′
(Colecção Particular)

By 'radical,' I understand one who goes too far; by 'conservative,' one who does not go far enough; by 'reactionary,' one who won't go at all.

Woodrow Wilson (1856—1924)

Pequena Canção para a Crise



O crime do rico a lei o cobre,
O Estado esmaga o oprimido.
Não há direitos para o pobre,
Ao rico tudo é permitido.
À opressão não mais sujeitos!
Somos iguais todos os seres.
Não mais deveres sem direitos,
Não mais direitos sem deveres!

Abomináveis na grandeza,
Os reis da mina e da fornalha
Edificaram a riqueza
Sobre o suor de quem trabalha!
Todo o produto de quem sua
A corja rica o recolheu.
Querendo que ela o restitua,
O povo só quer o que é seu!

A Internacional
Paris, 1871

domingo


Quando é que começa a corrida aos bancos?
Quando é que a crise chega à rua?

sábado

E agora algo completamente diferente




O governo manda dizer pelos mass-mérdia que apresentará o Orçamento de Estado para 2009 no dia 14 de Outubro e não no dia 15. Um dia antes do prazo! Soem trompetas e abram-se alas! A minh’alma está parva com tanta esperteza saloia!
Nos entretantos, o senhor presidente da república, que se extasia a mungir vaquinhas e se comove com a visão delas a chegarem-se, ordeiramente e uma a uma para a ordenha, inaugura uma escola primária em Alfandega da Fé. Deo Gratias!

Não concebem a história como desenvolvimento livre — de energias livres, que nascem e se integram livremente — diferente da evolução natural, tal como os homens e as associações humanas são diferentes das moléculas e dos agregados de moléculas. Não aprendem que a liberdade é a força imanente da história, que rebenta todo esquema preestabelecido. Os filisteus do socialismo reduziram a doutrina socialista a um esfregão do pensamente, emporcalharam-na e enfurecem-se contra quem, na sua opinião, não a respeita.
Gramsci


Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.

Miguel Torga